Dieta Cetogênica e Cetamina para Anorexia Nervosa: Remissão Completa em Caso Crônico

8/19/20258 min read

Em julho de 2020, pesquisadores liderados pela Dra. Barbara Scolnick, em colaboração com especialistas da NYU Langone Medical Center, Innovative Psychiatry e outras instituições, publicaram na revista Frontiers in Psychiatry o primeiro relato de caso sobre o uso de dieta cetogênica especificamente para tratamento de Anorexia Nervosa. Segundo os autores, este é também a primeira publicação descrevendo o uso de dieta cetogênica para pacientes com Anorexia Nervosa. O estudo documentou o caso de uma mulher de 29 anos que apresentava Anorexia Nervosa severa há 15 anos e foi tratada com dieta cetogênica seguida por infusões de cetamina.

O caso resultou em remissão completa dos sintomas que se manteve por mais de 6 meses após o tratamento. Segundo os autores, este é o primeiro relato do uso de dieta cetogênica especificamente para tratamento desta condição, e a remissão completa e sustentada de casos de Anorexia Nervosa crônica é rara na literatura médica.

Perfil da Paciente

A paciente era uma mulher solteira de 29 anos, criada em uma família de classe média alta onde ambos os pais eram advogados. Desde criança, destacava-se como atlética, artística e com excelência acadêmica. Seus pais observavam algumas tendências compulsivas, como "triturar borrachas" e querer seus pertences alinhados simetricamente, mas isso nunca alcançou um nível de preocupação clínica.

O histórico familiar revelava predisposições importantes: sua irmã mais velha era muito preocupada com a própria aparência, a avó paterna era "obcecada em ser muito magra" durante toda a vida (embora nunca tenha recebido diagnóstico psiquiátrico), e sua mãe havia sido diagnosticada com Transtorno de Ansiedade, fazendo uso de citalopram.

Aos 29 anos, apesar de ter enfrentado múltiplos desafios, ela demonstrava resiliência e determinação. Havia se formado em uma universidade de excelência (depois de várias tentativas de iniciar e abandonar a faculdade), trabalhava e havia iniciado a pós-graduação. Contudo, sua vida permanecia significativamente limitada pela Anorexia.

Ela reconhecia estar "vivendo uma vida muito limitada" e, movida pela esperança de recuperação que sempre manteve, decidiu tentar um tratamento inovador. Apesar de 15 anos de luta, ela nunca havia perdido a esperança de se recuperar completamente.

A paciente desenvolveu Anorexia Nervosa aos 14,5 anos durante um acampamento de verão, onde iniciou uma dieta com objetivo de "comer de forma mais saudável". O quadro evoluiu rapidamente para restrição alimentar severa.

Histórico clínico:

  • Perda de 13,6 kg após início dos sintomas

  • Convulsão tônico-clônica (grande mal, com rigidez muscular seguida de contrações rítmicas) aos 15 anos devido à desnutrição severa

  • Hospitalização por 6 semanas aos 15 anos

  • Múltiplas tentativas de tratamento ambulatorial e hospitalar

  • Três internações de um mês cada para dependência alcoólica entre os 21-29 anos

  • Peso estável em 54,5 kg durante anos


Estado aos 29 anos (pré-tratamento):

  • Altura: 1,62 metros

  • Peso: 56,8 kg

  • Padrões alimentares restritivos: somente sorvete por dias, uso excessivo de adoçantes artificiais

  • Exercícios diários compulsivos: 2 horas no ginásio

  • Alimentação sozinha, uso de guardanapo ao invés de prato

  • PHQ-9: 13 (depressão moderada a severa)

  • Diagnósticos: Anorexia Nervosa tipo restritivo, Transtorno Depressivo Maior recorrente



Protocolo de Tratamento

O tratamento foi desenvolvido com base na "Hipótese da Adaptação à Fuga da Fome", que conceptualiza a Anorexia Nervosa como um distúrbio primariamente metabólico, não psicológico. Esta abordagem foi apresentada à paciente como uma alternativa às explicações tradicionais que atribuem a Anorexia a questões de "controle" ou "escolha", narrativas que nunca fizeram sentido para ela e a sobrecarregavam com culpa.

Fase 1: Dieta Cetogênica (3 meses)

Fundamento Científico da Escolha
A decisão de usar dieta cetogênica baseou-se em dois fatores principais identificados pelos pesquisadores. Primeiro, estudos com modelo animal de "anorexia baseada em atividade" demonstraram que a dieta cetogênica preveniu a auto-inanição em roedores expostos ao paradigma de restrição alimentar com acesso livre a exercício. Segundo, dados emergentes sugerem que distúrbios na sinalização lipídica podem estar na base da patologia central da Anorexia Nervosa, e que a inanição crônica pode promover um tipo de "hibernação metabólica" que requer normalização dos sinais lipídicos para retomar as funções metabólicas e do Sistema Nervoso Central pré-mórbidas.

A dieta cetogênica altera fundamentalmente o metabolismo cerebral, mudando o combustível principal de glicose para cetonas. Esta mudança metabólica leva a alterações em neurotransmissores como adenosina e GABA, além de neuropeptídeos como leptina, adiponectina e peptídeos liberadores de hormônio do crescimento. Como a Anorexia Nervosa tem ligação genética demonstrada com anormalidades no metabolismo de gorduras, os pesquisadores hipotetizaram que uma intervenção que normalize o metabolismo lipídico poderia ser terapêutica.

Implementação Clínica

A paciente foi orientada por nutricionista especializada em dieta cetogênica, sendo instruída sobre como preparar refeições e vitaminas ricas em gordura e com baixo teor de carboidratos. Surpreendentemente, apesar das expectativas de que seria difícil para uma pessoa com Anorexia consumir alimentos ricos em gordura (já que indivíduos com anorexia tipicamente evitam alimentos hipercalóricos), ela achou relativamente fácil fazer a transição.

Especificações da dieta:

  • Proporção: 2:1 a 1:1 (gordura : carboidrato + proteína em gramas)

  • Base: alimentos de origem animal

  • Objetivo: induzir cetose estável

  • Eliminação de adoçantes não nutritivos

  • Alimentos principais: bacon, ovos, queijo, abacate, óleo TCM


Monitoramento:

  • Medição de cetona no hálito 2-3 vezes por semana

  • Níveis mantidos entre 2-3 na escala qualitativa (0-6)


Evolução Durante a Fase Cetogênica

Inicialmente, a paciente alternava entre seguir rigorosamente a dieta cetogênica e relaxar o protocolo. Gradualmente, ela começou a ter insights sobre a "voz anoréxica" e tornou-se mais fácil seguir a dieta e permanecer em cetose. Ela observou que quando comia abacate ou bacon com ovos, a "voz" ficava mais suave, enquanto o consumo de açúcar gerava euforia seguida de sentimentos de pânico.

Resultados após 3 meses:

  • Paciente relatou melhora de "30-40%" dos sintomas

  • Persistência de compulsões anoréxicas

  • Maior clareza sobre gatilhos alimentares


Fase 2: Infusões de Cetamina (14 dias)

Fundamento Científico da Cetamina

A decisão de adicionar cetamina baseou-se tanto em estudos com o modelo animal quanto em precedentes clínicos limitados. Experimentos com o modelo de "anorexia baseada em atividade" encontraram que a vulnerabilidade individual dos roedores à auto-inanição correlacionava-se com níveis de receptores NMDA de glutamato no hipocampo dorsal. Como a cetamina é um antagonista bem conhecido dos receptores NMDA, pesquisadores testaram se a injeção de cetamina no segundo dia (quando o animal começava a auto-inanição e hiperexercício) poderia alterar o comportamento.

Os resultados foram notáveis: animais tratados com cetamina comeram mais, exercitaram-se menos e tornaram-se resilientes à auto-inanição quando re-expostos ao paradigma, comparados aos tratados com placebo. Adicionalmente, um estudo de 1998 de Mills et al. em Cambridge tratou 15 pacientes com Anorexia Nervosa crônica severa com série de infusões de cetamina, relatando melhora significativa prolongada em 9 pacientes.

A cetamina emergiu como tratamento para Transtornos do Humor resistentes a tratamento, particularmente aqueles com ideação suicida. Como sintomas psiquiátricos como ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, depressão e dependência são frequentemente observados em indivíduos com anorexia nervosa, os pesquisadores consideraram que a cetamina poderia abordar estes aspectos comórbidos.

Considerações Especiais de Segurança

Os pesquisadores abordaram o tratamento com cetamina cautelosamente porque a paciente tinha histórico de dependência alcoólica. Abuso de substâncias é comum em pacientes com anorexia nervosa, e a cetamina é uma droga recreativamente abusada. No entanto, um estudo recente reunindo dados de 5 ensaios clínicos não encontrou evidência de efeitos colaterais graves de uma única infusão de cetamina para depressão clínica, e a cetamina não foi associada ao aumento do abuso.

Avaliação Pré-Tratamento

Antes de iniciar as infusões, a paciente passou por avaliação psiquiátrica abrangente que confirmou os critérios DSM-V para anorexia nervosa tipo restritivo e transtorno depressivo maior recorrente, moderadamente severo.

Parâmetros iniciais:

  • PHQ-9: 13 (depressão moderadamente severa)

  • Peso estável: 56,8 kg

  • Manutenção da dieta cetogênica


Protocolo de Administração

As infusões foram realizadas em ambiente médico controlado, seguindo protocolos de segurança rigorosos para minimizar riscos e otimizar os resultados terapêuticos.

Protocolo de administração:

  • 1ª infusão: 0,75 mg/kg (42,68 mg)

  • 2ª infusão: 1,0 mg/kg

  • 3ª infusão: 1,1 mg/kg

  • 4ª infusão: 1,2 mg/kg

  • Cetamina racêmica IV em 30 ml de solução salina 0,9%

  • Duração: 45 minutos por infusão

  • Ambiente: sala privada, luzes diminuídas, máquina de som, máscara ocular

  • Pré-medicação: ondansetrona 4g sublingual (após primeira infusão)


Monitoramento:

  • Sinais vitais contínuos

  • Saturação de oxigênio

  • Monitoramento cardíaco


Resultados Clínicos

Resposta às Infusões

Após 1ª infusão:

  • PHQ-9: 13 → 6

  • Paciente relatou enfraquecimento da "voz anoréxica"


Após 3ª infusão:

  • PHQ-9: 2


Após 4ª infusão:

  • Resposta considerada pelos autores como "dramática"

  • Paciente relatou não ser mais anoréxica

  • Eliminação de regras alimentares

  • Capacidade de exercitar-se por prazer, não compulsão


Efeitos Colaterais Observados

Durante as infusões:

  • Dissociação (relato de sentir-se "fora do corpo")

  • Diminuição da fluência verbal

  • Náusea leve após primeira infusão


Resolução:

  • Todos os efeitos colaterais desapareceram em 20 minutos

  • Nenhum efeito adverso grave reportado

Seguimento (6+ meses)

Parâmetros físicos:

  • Peso: 61,3 kg (peso pré-mórbido aos 14,5 anos)

  • Peso mantido estável por mais de 6 meses


Mudanças comportamentais:

  • Ausência de pensamentos obsessivos sobre anorexia

  • Eliminação de regras rígidas sobre alimentação

  • Exercício não compulsivo

  • Continuidade da dieta cetogênica


Acompanhamento:

  • Terapia de apoio semanal

  • Pesagem ocasional (a cada poucas semanas)

  • Manutenção da remissão durante pandemia COVID-19


Fundamentos Científicos

Hipótese da Adaptação à Fuga da Fome

O tratamento baseou-se na teoria que conceptualiza anorexia nervosa como distúrbio metabólico. Esta perspectiva sugere que alguns indivíduos, quando expostos à escassez alimentar, desenvolvem comportamentos que teriam sido adaptativos evolutivamente: negação da fome, hiperatividade e capacidade de percorrer longas distâncias.

Modelo Animal

Anorexia baseada em atividade:

  • Roedores expostos à restrição alimentar leve + acesso livre à roda de exercício

  • Alguns animais (frequentemente fêmeas adolescentes) aumentam corrida e reduzem alimentação drasticamente

  • Modelo replica aspectos da anorexia humana


Estudos com dieta cetogênica:

  • Dois estudos demonstraram que dieta cetogênica previne auto-inanição no modelo animal

  • Dieta rica em gordura (não cetogênica) também preveniu auto-inanição


Estudos com cetamina:

  • Vulnerabilidade à auto-inanição correlaciona-se com níveis de receptores NMDA no hipocampo dorsal

  • Injeção de cetamina no dia 2 do modelo alterou comportamento: animais comeram mais, exercitaram-se menos

  • Animais tratados tornaram-se resilientes à auto-inanição quando re-expostos ao paradigma


Mecanismos Propostos

Dieta cetogênica:

  • Mudança de combustível cerebral: glicose → cetonas

  • Alterações em neurotransmissores: adenosina, GABA

  • Modificações em neuropeptídeos: leptina, adiponectina, peptídeos liberadores de hormônio do crescimento


Cetamina:

  • Antagonista de receptores NMDA de glutamato

  • Afeta as mesmas moléculas alteradas no modelo animal: BDNF, GABA, receptores NMDA


Possível sinergismo:

  • Ambos afetam os mesmos sistemas neurobiológicos

  • Dieta cetogênica pode "preparar" a resposta à cetamina

Precedentes na Literatura

Dieta Cetogênica

  • Uso estabelecido para epilepsia desde 1921

  • Terapia para distúrbios neurológicos: Parkinson, Alzheimer inicial, transtorno bipolar

  • Segura e eficaz para outros distúrbios neurológicos

  • Anorexia nervosa tem ligação genética com anormalidades no metabolismo de gorduras


Cetamina para Anorexia

Estudo de Mills et al. (1998):

  • 15 pacientes com anorexia nervosa crônica severa

  • Série de infusões de cetamina

  • Melhora significativa prolongada em 9 pacientes

  • Doses: 20 mg/h por 10 horas

  • Uso concomitante de bloqueador opioide

Limitações do Estudo

Metodológicas

  • Relato de caso único

  • Escalas padronizadas para transtornos alimentares não utilizadas

  • Não foi organizado como ensaio clínico

  • Não há escalas de transtornos alimentares validadas para uso com cetamina


Interpretação dos Resultados

  • Impossível determinar qual modalidade foi essencial

  • Tratamento envolveu três componentes: mudança conceitual sobre anorexia + dieta cetogênica + cetamina

  • Sequência temporal pode ter sido crucial (dieta precedendo cetamina)


Conclusões dos Autores

Os pesquisadores concluem que a plausibilidade médica do tratamento e o prognóstico reservado da anorexia nervosa crônica justificam estudos adicionais tanto da dieta cetogênica quanto da cetamina nesta população de pacientes. Os objetivos seriam restauração de peso, normalização do funcionamento cognitivo e emocional, e melhora da qualidade de vida.

O relato oferece uma perspectiva diferente sobre anorexia nervosa como distúrbio com componentes metabólicos significativos, potencialmente tratáveis com intervenções que abordem esses aspectos fisiológicos subjacentes.

Link do estudo original